domingo, 17 de março de 2024

Artigo| Godzilla In Hell destrinchada: As inspirações esotéricas e os paralelos com a Divina Comédia.

Em seus 70 anos de história, Godzilla já passou pelas mais diversas situações, mas nenhuma é tão inusitada quanto Godzilla in Hell, lançada em 2016.

 Godzilla in Hell é aquele tipo de obra diferente, que traz algo completamente novo para o personagem e você chega a se perguntar como algo assim existe. Quando lida de primeira, você provavelmente não entende nada, e não é a toa que é consenso na fandom que se trata da obra mais confusa envolvendo o rei dos Monstros.

 Mas, por trás de toda sua estética onírica, confusa, esotérica e sua quase total falta de palavras, Godzilla in Hell esconde uma grande história, provavelmente a mais profunda envolvendo o Kaiju.


 Para começar nosso processo de entendimento da obra, devemos entender o básico sobre as duas inspirações para a existência da HQ. A primeira é a obra Divina Comédia de Dante Alighieri e a outra é o conceito do Gnosticismo.

 Na Divina Comédia, acompanhamos Dante, o próprio escritor do poema em uma jornada  até o paraíso, mas antes, ele, guiado por Virgílio, tem que passar pelo inferno e purgatório, e ao chegar no paraíso, passa a ser guiado por sua musa, Beatriz, até estar cara a cara com o próprio Deus. A obra é uma reflexão sobre a vida na Terra e suas consequências no pós vida, Dante detalha ao extremo o castigo que cada tipo de pecador terá no inferno ou cada angústia que terá no purgatório, bem como a recompensa para aqueles que seguiram o caminho certo em vida, é uma obra fundamentalmente cristã, embora com críticas duras a igreja.


 E se a Divina Comédia é uma obra cristã, a outra inspiração de Godzilla in Hell é uma heresia. O Gnosticismo foi uma corrente de pensamento do cristianismo primitivo que entrava em atrito com a igreja. Com as guerras de ideias, o Gnosticismo acabou “derrotado” seus livros foram majoritariamente queimados e seu conhecimento quebrado. Havia e ainda hoje com a ascensão de correntes esotéricas há várias vertentes desse pensamento que discordam entre si. Temos que ser sinceros aqui e admitir que Godzilla In Hell não se aprofunda ao extremo, usa o conhecimento base dessa antiga religião, e trataremos da mesma forma. Por isso um Gnóstico, dependendo da corrente que segue pode ler esse artigo e achar os paralelos aqui presentes um verdadeiro absurdo. Porém, é uma inspiração para a obra mencionada.

 “Basicamente” no Gnosticismo há dois deuses. Um é o Deus supremo e incognoscível. Que habita o mundo espiritual perfeito. O outro é o Deus Criador, o Demiurgo, criador do mundo material. O Demiurgo é o cerne da maldade, ele como a primeira criatura imperfeita, criado por um erro de Sophia (importante entidade Gnóstica) enganou os espíritos do mundo perfeito e os prendeu na carne e alma de animais de seu mundo material, então, agora cabe a esses espíritos despertarem dessa realidade imperfeita, maligna e incriada e retornarem a seu verdadeiro lar de origem, o Pleroma. Ou serem consumidos pelo Demiurgo ao se ajoelharem pra ele.

 Destrincharemos agora, edição por edição de Godzilla in Hell, e traçaremos seus paralelos com a Gnose e com a Divina Comédia, deixaremos também o link de cada edição (clicar na palavra)  para caso o leitor queira ler pela primeira vez ou recapitular a edição antes da explicação que estará junto com os links.


Edição 1:


Aqui começa a saga, com Gojira caindo no inferno. O jeito que o genial James Stokoe desenha, remete a arte da queda de Lúcifer por Gustave Doré. Assim como Dante na Divina Comédia, Godzilla entra no inferno vivo, mas diferente do italiano, o monstro não possui um Virgílio para guia-lo. “Abandonai toda a esperança vós que entra aqui!” no início do inferno é a referência que não podia faltar em uma obra inspirada na comédia. Godzilla destrói a escritura e adentra esse novo lugar, “luxúria” aparece escrita na fumaça, Godzilla caminha até uma usina, e vai verifica-la. Talvez uma referência ao pecado da gula já que em filmes anteriores, Godzilla se alimentava dos reatores nucleares em usinas. Ao olhar para a usina, Gojira é atacado por uma estranha entidade que ele destrói facilmente, após isso, Godzilla se depara com um enxame de condenados nus, pessoas que morreram pela mencionada Luxúria, aqui novamente vemos homenagens a Doré na arte de Stokoe. O mar de pecadores arrasta Godzilla até um inimigo, um inimigo idêntico a ele, um paralelo com o monstro Orga de Godzilla 2000. Orga buscava consumir Godzilla, este demônio usa a aparência de Godzilla para atrai-lo e tentar matar o Kaiju, uma batalha é travada e Godzilla vence, sua vitória o leva para um círculo mais baixo do inferno. Nesta edição vemos as primeiras referências visuais às criaturas de H.P Lovecraft que alguns oponentes terão ao longo da jornada.


Edição 2

Godzilla caminha mais pelo inferno e nesta edição desenhada por Bob Eggleton enfrenta velhos rivais que já cruzaram seu caminho na Terra. Não fica claro se esses monstros morreram ou se são versões infernais deles para punirem Godzilla. Rodan, Anguirus e Varan, enfrentam o Rei, até chegar o ponto em que o maior de seus rivais aparece, Ghidorah. Aqui é dito que ele é o responsável por Godzilla estar no inferno. E alguns se questionam se Ghidorah não teria matado Godzilla nessa HQ, o que não aconteceu. Como dito anteriormente, Godzilla entra no inferno vivo, igual Dante. De algum jeito, o combate entre os dois titãs terminou com Godzilla atravessando um dos portais para o inferno. Assim como os outros monstros, não se sabe se Ghidorah está morto e condenado ao inferno. Ele empurra Godzilla para um redemoinho, que leva o Kaiju para outro ciclo do inferno.


Edição 3: 

Tudo que vimos até agora, são paralelos com a Comédia, aqui, o enredo dessa história se expande e entram os paralelos com o Gnosticismo. O roteiro de Ulisses Farinas e Erick Freitas, junto a arte de Buster Moody, dão proporções bíblicas, épicas para a história.

  Godzilla está lutando contra Spacegodzilla no Rio de Janeiro, aqui já vemos uma referência blasfema, onde Spacegodzilla pulveriza a estátua do Cristo Redentor. O combate entre os dois monstros explode o mundo e “mata” ambos. Aqui vemos uma diferença de escala entre o inferno de Dante e o inferno de Godzilla. O inferno de Dante é dentro da Terra, como se ela fosse Oca, o de Godzilla é em outra dimensão. Com direito a sua própria versão de nosso planeta, que acaba destruído pela briga dos dois Godzillas. Alguns dizem que Godzilla não morre nesta parte da HQ pois a Toho não permite isso, usando como base o caso de Matt Frank que queria matar Godzilla no final da HQ Godzilla Rulers of Earth e foi censurado pela Toho. De fato, a Toho não deixa Godzilla morrer nas mãos dos estadunidenses desde o fiasco de 98. Mas o caso aqui é diferente. Enquanto Frank planejava matar Godzilla em definitivo e para um monstro inventado por ele mesmo, Godzilla in Hell mata o Godzilla para que ele passe por uma evolução. A história continua, com Godzilla morto. E é uma história que lida com questões espirituais, logo, a morte de Godzilla pode ser explorada sem ferir os direitos da Toho, diferente das histórias presas a tramas “materiais”. E essa não é a única vez que Godzilla morrerá nessa história.

  Godzilla morre e acorda em um lugar completamente novo, ele está cercado por vários anjos, que aqui possuem uma estética que remete a Mothra. Godzilla se enoja e encara aquela legião, ao redor de uma imensa montanha feita com partes de kaijus. A montanha abre seus olhos e exige submissão do Godzilla. A montanha é o Deus Abraâmico como já citado por Farinas. E aquele lugar é o Paraíso. Antes de prosseguirmos com a trama, vamos detalhar esta visão de Deus. Ele tem uma aparência monstruosa, assim como o Demiurgo da Gnose, porém enquanto na Gnose é um “mero” leão com corpo de serpente, aqui a entidade tem uma aparência Lovecraftiana. O que combina muito já que os deuses de Lovecraft são basicamente Demiurgos. Mas este Demiurgo de Godzilla In Hell é ainda mais poderoso que o Demiurgo Gnóstico. Enquanto na Gnose o Demiurgo tem poder apenas sobre o mundo material, o Demiurgo de In Hell tem poder sobre o espiritual também, ele é de fato o Deus supremo, quase uma mistura de Uno e Demiurgo Gnósticos, mas sem a onipotência do Uno.

 No Gnosticismo, o espírito desperto na matéria deve enfrentar o Demiurgo, um combate dificílimo que pode terminar em um espírito louco, reencarnando mais uma vez em um novo corpo caso perca ou em um senhor de si mesmo caso vença.

 Por fim, o fato deste Demiurgo ser semelhante a uma montanha, é a primeira referência ao Purgatório da Divina Comédia. Na obra de Alighieri, quando Lúcifer caiu, seu corpo afundando como um meteoro, criou os noves círculos do inferno e também a montanha do purgatório, cujo o tamanho alcança os três reinos, Céu, Terra e Inferno. Começando no último círculo do inferno e indo próximo até o primeiro céu. Os condenados com chance de entrarem no paraíso devem escalar essa montanha para chegar até o reino de Deus.

 Voltando a trama da HQ, Deus exige a submissão de Godzilla, ordenando que ele sirva a paz. Se formos ver bem, Godzilla é a representação da Guerra desde que nasceu em 54, então esse pedido de Deus é basicamente um pedido para que Godzilla rejeite a si mesmo. Impassível, Godzilla encara Deus inabalável e um anjo irritado avança contra Godzilla, que o mata feito um mosquito. Esse ato irrita Deus, que joga Godzilla no inferno uma vez mais. E aqui há mais paralelos com a Comédia.

 Ao ser jogado no inferno, Godzilla se vê em um setor congelado do mesmo, na Comédia, esse círculo é o último, onde fica Lúcifer, o círculo dos traidores. Imediatamente Spacegodzilla reaparece, sendo cultuado por demônios e exigindo que Godzilla faça parte do inferno. Godzilla acabou de recusar o próprio Deus, ela não se renderia ao inferno também. E falando no Diab... Deus o próprio intervém, dando seu próprio poder celestial a Godzilla, enquanto os anjos atacam os demônios. Não é nada confirmado mas dado ao fato deste momento da HQ ser basicamente uma luta do céu e inferno pelo espírito de Godzilla, pode-se dizer que Spacegodzilla representa Lúcifer neste momento. Godzilla usa o poder superior do paraíso para destruir Spacegodzilla. Deus estava convencido de que Godzilla agora se renderia a ele, e exige submissão novamente. Godzilla então ataca o próprio Deus com o poder que o próprio deu a ele e o mata. Impressionados com esse ato inesperado, anjos e demônios se curvam e começam a adorar Godzilla, pois ele é o mais próximo de Deus que existe agora. Mas o grande lagarto não tem interesse em ser cultuado e devora alguns de seus novos cultistas enquanto segue por sua jornada no inferno, deixando os sobreviventes do confronto pra trás.

 Quando Virgílio não pode mais prosseguir viagem com Dante na Divina Comédia, ele diz ao protagonista do poema, que agora ele é Senhor de Si mesmo e não precisa mais do auxílio dele, deixando Dante seguir viagem sozinho até o paraíso onde será guiado por Beatriz. Isto ocorre no topo do monte purgatório. Nesta edição ocorreu algo semelhante. Godzilla venceu uma montanha (Deus) que fazia referência ao Purgatório e se afirmou como Senhor de Si mesmo.


Edição 4: 

Mesmo que tenha vencido Deus, Godzilla ainda está no inferno, e precisa vence-lo. No roteiro de Brandon Seifert,  Após o círculo congelado, Godzilla se encontra em um ciclo de eterna luta com Destoroya e Ghidorah. Os três monstros se matam continuamente e depois voltam a vida para se matar de novo. Mais uma referência gnóstica. Essa luta eterna é um paralelo com o mundo material onde os espíritos morrem e reencarnam até serem consumidos pelo Demiurgo. Nesse processo de eterna morte, Godzilla percebe o padrão macabro e ao invés de atacar seus inimigos, ataca o muro daquele Coliseu infernal. Com essa quebra de padrão, Destoroya e Ghidorah que lutavam entre si, resolvem fazer o mesmo que Godzilla, no que resulta na quebra daquela dimensão que parecia ser um inferno mental de Godzilla. Pois, conforme ele avança para seu último desafio, Ghidorah e Destoroya são desfeitos como poeira.


Edição 5:


Na conclusão épica dessa aventura de Godzilla, com roteiro e arte de Dave Wachter, o rei dos Monstros atravessa os últimos lugares do inferno, passando por gelo e fogo, até chegar no território de pequenas bestas aladas que o perseguem até seu destino final, o Monte Purgatório. Dessa vez não apenas uma referência como Deus era, mas um exato paralelo com a obra de Dante. No topo do monte há um portão e uma criatura Lovecraftiana, o Guardião. Guardião este que é uma referência ao Yog-Sothoth dos contos de Lovecraft, “Yog-Sothoth é a Chave e Guardião do Portão. Passado, presente, futuro, todos são um em Yog-Sothoth.” 

Na mitologia de Lovecraft, Yog-Sothoth é o mais poderoso dos deuses. Aqui, podemos dizer que ele é a parte de Deus que fica no inferno. Ao ver o último inimigo no topo, Godzilla tenta usar seu famoso raio atômico, que ele descobre não funcionar ali, o purgatório não permite que ele use seu truque. Godzilla então, como os condenados da comédia tenta subir a montanha e acaba falhando. Ao encarar o topo distante, Godzilla entende o que deve fazer, ele rejeitou Deus e sua paz, em um ato exagerado ele matou este Deus e se tornou ele. Ele já não é mais “apenas” Godzilla. O Kaiju então, se entrega ao inferno, deixa os demônios alados destruírem seu corpo, quando ele não é nada além de um esqueleto, usando seus novos poderes, Godzilla reconstrói seu corpo usando os demônios que o consumiram, possuindo seus corpos. Agora, Godzilla tem o poder do céu e do inferno, ele só precisa destruir o Guardião e atravessar o portão, e é exatamente o que ele faz. Como já mencionado, na Comédia, quando um condenado vence o purgatório ele chega ao paraíso. Mas aqui, Godzilla venceu inferno, purgatório e paraíso. Com a morte de Deus, não há mais paraíso. Então ao atravessar os portões, Godzilla vai para um novo mundo, o mundo dele. Pois agora, ele não é apenas Godzilla, ele é Deus e também o Inferno. Godzilla não é mais senhor apenas de si mesmo, mas agora, é senhor de tudo.

 “É melhor conquistar a si mesmo do que vencer mil batalhas. Então a vitória é sua. Não pode ser tirada de você, nem por anjos ou por demônios, pelo céu ou pelo inferno.” – Buddha 

É a frase que encerra a HQ, embora não seja verídica e Buda nunca a tenha dito de fato (trata-se de um erro de tradução mais informações clicando neste parêntese) reforça as inspirações místicas da HQ e casa perfeitamente com todo o enredo da obra.

Isto, é a história, de Godzilla no Inferno.

~GhostGoji

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