segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Como um filme do Godzilla se tornou o filme de outra coisa. A triste história do filme de 94

 



Várias franquias de filmes tem aquele filme horrível que como uma mancha é infelizmente inesquecível pelo seu nível de ruindade. Na franquia de Godzilla essa mancha é o longa de 98.

Se cavarmos a fundo a história dos bastidores desse projeto, logo descobrimos a triste verdade de que esse filme ia ser ótimo, pelo menos para um fã da franquia. Mas dinheiro e ignorância falaram mais alto e o filme se tornou um dos maiores casos de incompetência cinematográfica da história.


Godzilla (1994)

Pra entendermos o que deu errado no filme de 98, temos que voltar um pouco no tempo, para o ano de 1992, ano em que a Sony adquiriu os direitos para fazer um filme americano do Godzilla, o filme sairia entre 1994 e 1996. Sony deixou o projeto a cargo da sua subsidiária, TriStar.

O filme tinha um excelente roteiro escrito por Terry Rossio e Ted Elliott, famosos atualmente por Piratas do Caribe e Shrek. E direção de Jan de Bont, que participou da direção de fotografia de diversos filmes. Os efeitos especiais ficaram por conta de Stan Winston, que já havia sido responsável por grandes efeitos do cinema, como os dinossauros de Jurassic Park, os Xenomorfos de Aliens o Resgate e vários outros filmes que marcaram a vida de muitos. Rossio e Elliott escreveram um roteiro que honrava com maestria o Godzilla original, com um vilão à altura do Rei dos Monstros e uma épica batalha no final. Jan de Bont adorou o roteiro e seu objetivo era fazer um filme que fizesse jus aos clássicos japoneses mas com a tecnologia avançada de Hollywood. Tudo ia bem e o filme tinha tudo pra dar certo, mas a velha maldição da adaptação americana de uma obra originalmente asiática atingiu o filme graças a incompetência da TriStar.

Na visão da TriStar, Godzilla era uma tolice, um personagem bobo feito pra crianças, o filme custaria cerca de 130 milhões de dólares, e a TriStar se recusava a liberar essa quantia pro filme, com a desculpa de que estava muito caro, à produtora não deixava o projeto andar pra frente e isso irritou o diretor, levando ele a abandonar o barco. Outros diretores foram chamados para dirigir o longa, e um deles foi Roland Emerich, sua opinião sobre Godzilla era semelhante a da TriStar, então ele não aceitou. Não naquele dia.

Emerich estava trabalhando em seu filme “Independence Day” quando recusou, mas após uma conversa com seu amigo Dean Devlin, os dois acharam uma boa idéia aceitar aquele convite que Emerich tinha recusado anteriormente, e então se tornaram os comandantes do longa, porém tinham informado a TriStar que o roteiro de Rossio e Elliott apesar de bom não era o que eles queriam fazer, o filme deveria ser totalmente feito por eles, nisso os roteiristas pularam fora também, a partir daí não era um filme de Godzilla que seria feito e sim de um outro monstro.

Antes de prosseguirmos para os podres da produção do filme, vamos dar uma rápida olhada em como seria originalmente o longa de 94:

O filme começaria no Alasca, uma equipe estaria recuperando reatores abandonados pela união soviética na Guerra Fria. Um erro resultaria em uma explosão que iria abrir uma fenda, onde descobrem Godzilla, o monstro desperta e mata uma equipe sem perceber, e um pouco depois ataca as ilhas japonesas de Kurila. Um pescador sobrevive ao ataque e chama o monstro de “Gojira” reconhecendo-o de uma antiga lenda japonesa.

Doze anos depois, dois criptozoologistas entram no hospital onde está o pescador, este mostra aos cientistas desenhos que ele fez de Godzilla lutando contra outro monstro.

Enquanto os militares permanecem caçando Godzilla, um meteoro caí na Terra e modifica morcegos, que passam a atacar gado e pessoas.

O filme segue o padrão dos filmes do Godzilla, com militares tentando matar o rei, até perceberem que a verdadeira ameaça é outra, Godzilla existe para proteger este mundo, o problema se chama Grifo. Um monstro com corpo de puma, asas de morcego e línguas de cobra, o monstro que lutava com Godzilla nos desenhos do pescador. O filme enfim termina com Godzilla derrotando o Grifo brutalmente e rugindo vitorioso.

Como dito, isto é apenas um resumo, você pode ler o roteiro com mais detalhes neste link: :http://www.scifiscripts.com/scripts/GODZILLA.TXT

Ou se preferir, em 2018 o roteiro original do filme ganhou uma adaptação em quadrinhos que você pode ler aqui


G.I.N.O (1998)

  No total controle do longa, Emerich e Devlin jogaram o roteiro fora, deixando apenas algumas cenas, como a do pescador citando o nome original do monstro. Em seguida, Emerich rejeitou o design de Stan Winston, pra ele aquilo era parecido demais com o Godzilla original, e ele queria algo completamente diferente do Godzilla japonês que ele considerava tão ridículo.

Emerich deu a Patrick Tatopoulos a missão de fazer um novo design. Patrick se animou pensando que poderia criar um Godzilla parecido com os japoneses, ele chegou até a citar que esse era o sonho de qualquer designer de criaturas em Hollywood. Mas Emerich fez suas exigências para Patrick, ele estranhou mas seguiu as instruções de Emerich, e este foi o resultado:

Emerich estava quase desistindo da ideia de fazer o filme, mas se animou em continuar essa péssima idéia após ver o design de Tatopoulos. Ele ficou encantado com a criatura e seguiu em frente com o projeto.

Mas este design tinha que ser aprovado pela Toho. Então Emerich e Tatopoulos foram á uma reunião com produtores e diretores dos filmes originais, levando uma estátua para mostrar seu novo design.

Ao ver o design os japoneses fizeram a famosa “stone face” olhando para a estatueta sem nada dizer.

Emerich se antecipou explicando que a criatura era daquele jeito pois no filme dele o monstro seria bem esguio e rápido.

No mesmo dia ele citou que se não aprovassem, ele abandonaria o projeto. Ou seria feito da maneira dele, ou eles teriam que encontrar outra pessoa. Os japoneses apenas disseram que dariam a resposta no dia seguinte.

A resposta foi sim. Os japoneses ainda estranhavam a criatura pois era muito diferente de Godzilla, mas eles queriam um filme americano do monstro pra alavancar sua fama. E tempo demais já havia passado, não queriam mais adiar, e o nome de Emerich estava no topo graças a Independence Day. O filme tinha que sair.

Mesmo aprovando o design esquisito, a Toho ainda se preocupava. Eles então fizeram um documento de mais de 70 páginas que Emerich concordou em seguir... ao menos da boca pra fora.

As principais eram:

1 – A origem de Godzilla teria que ter algo a ver com uma explosão nuclear.

2 – Deveria ter quatro dígitos nas mãos e pés e três fileiras de espinhos. (Tatopoulos obedeceu. Originalmente, Zilla teria cinco dedos e apenas duas fileiras de espinhos.)

3 – O monstro não poderia comer pessoas. (Emerich deu um jeito de burlar isso, usando os filhotes, já que a ordem foi específica para o monstro adulto.)

4 – Godzilla não precisava morrer, era preferível que continuasse vivo. (Claro que Emerich discordava.)

O filme foi lançado em maio de 1998, e todos sabem o que aconteceu, o filme se chamava Godzilla, mas Godzilla não estava lá.

Fracasso de crítica e público, godzilla de 1998 decepcionou fãs de todas as partes do mundo, não só do Japão. Todos que conheciam o lagartão estranharam o filme, pois o que deveria ser Godzilla era completamente diferente dele, a criatura presente no longa era medrosa, frágil e banal, enquanto o verdadeiro Godzilla das eras Showa e Heisei se mostrava um ser destemido, indestrutível e imponente.

Podia ser só um caso de adaptação ruim, em que colocaram alguém não muito qualificado pro trabalho, mas não é esse o caso do filme de 98. Roland Emerich definitivamente não gostava do personagem e desprezava os filmes originais japoneses, ele deixava isso bem nítido em entrevistas e makings-of.

"Eu não queria fazer o Godzilla original. Eu não queria nada relacionado a ele. Eu queria fazer meu próprio Godzilla. Pegamos a parte do filme original em que a criatura é criada pela radiação e se torna um grande problema e foi tudo o que fizemos. Então nos perguntamos o que faríamos com uma história dessas hoje em dia. Esquecemos tudo sobre o Godzilla original alí." -Emerich em The making of Godzilla, HarperPrism, 1998

“Assisti cerca de 14 ou 15 filmes e então eu desisti. É apenas o mesmo filme de novo e de novo. Sempre tinham um outro monstro e nada mais do que monstros lutando. Por motivos que eu não consigo explicar, crianças de todo o mundo continuam assistindo esses filmes...” – Emerich para o Los Angeles Times, 1998.

Não só Emerich, mas Devlin e boa parte da equipe de produção do filme não tinham respeito algum pela obra japonesa. Desdenhando dos atores que vestiam o traje do monstro, dos efeitos “inferiores” e dos enredos.

A ironia é que o filme que eles produziram foi massacrado pelos exatos motivos que eram motivo de zombaria aos clássicos japoneses.

De última hora resolveram não usar Animatrônicos,(apenas em cerca de três cenas.) e deixaram o filme pura computação gráfica, o resultado não foi lá muito bom. Mesmo para a época os efeitos eram um tanto estranhos, e futuramente acabariam envelhecendo muito mau. Essa decisão acabou deixando o filme bem caro, com um orçamento de cerca de 140 -150 milhões de dólares, o que é bem esquisito quando lembramos que anteriormente recusaram as idéias originais que fariam o longa custar 130 milhões.

Mesmo odiado na época tanto por fãs de longa data quanto por quem só queria ver um bom filme, o filme de 98 conseguiu sua pequena base de fãs com algumas pessoas que cresceram assistindo ele, e cegos por nostalgia formam uma pequena comunidade de adoradores do filme.

O efeito negativo causado pelo filme, fez com que a Toho se apressasse em ressuscitar o verdadeiro Godzilla. Este só teria um novo filme em 2005, dando uma pausa de dez anos do término da era Heisei. Assim como a era Heisei começou com um hiato de dez anos desde o último filme da era Showa.

Logo, Godzilla 2000 começou a ser produzido e foi lançado um ano depois da falha de 98, em 1999. E pra começar a era Millenium com o pé direito, o filme já trazia uma crítica a versão de 98.

“Na verdade, não tínhamos planos para outro filme do Godzilla até o ano de 2005. A mudança de idéia veio, e eu admito, por causa que agora o Godzilla da TriStar é Godzilla. Sentimos que depois de ver o filme da TriStar, não poderíamos deixar o Godzilla japonês em silêncio até 2005”. – Shogo Tomiyama

Futuramente, Toho compraria os direitos do monstro de 98 e o batizaria de Zilla, colocando-o para ser destruído pelo verdadeiro Godzilla.

Mas enquanto Zilla não existia, um outro apelido foi dado para a criatura do filme da TriStar, e é um nome até mais apropriado para se referir ao monstro do filme em específico, já que legalmente ele ainda é o “godzilla”. O apelido é G.I.N.O (Godzilla in name only/ Godzilla apenas no nome).

Tal apelido foi criado e popularizado após uma crítica de Kenpachiro Satsuma (intérprete do Godzilla na era Heisei) ao longa.

Alguns dias após a estreia do filme, Satsuma e Haruo Nakajima (Godzilla Showa) assistiram o filme na G-con 98, Satsuma se levantou no meio do longa e foi embora, alegando que aquilo não era o Godzilla pois não tinha o mesmo espírito. Isso vindo de alguém tão importante na franquia ganhou força e logo se espalhou, originando o não oficial mas que no fundo todos sabem que é, o verdadeiro nome do monstro do filme de 98, G.I.N.O.


Pontos positivos?

No filme em si, nenhum. Além do filme desrespeitar Godzilla, como filme ele também é uma falha absoluta. São duas horas de pura propagando patriota pra endeusar o exército dos EUA, dentro de um roteiro pobre que é uma cópia descarada de "O Monstro do Mar (1953)", cenas de ação plagiadas de "Jurassic Park (1993)" , lotado de personagens medíocres com várias subtramas desinteressantes e inúteis.

Mas... Esse filme trouxe uma lição e se tornou o exemplo perfeito do que não fazer em um filme do Godzilla. E é este seu ponto positivo. Com medo de repetirem o erro que foi a obra da TriStar, todos que tiveram a oportunidade de trabalhar com o personagem Godzilla repensaram várias coisas antes de lançar a versão final, inclusive a própria Toho aprendeu a tratar Godzilla melhor. Lembremos que, apesar de TriStar e Roland Emerich terem sido os principais culpados dessa tragédia, a Toho também tem culpa no cartório, afinal ela aprovou tudo isso, ela sabia o quão ruim estava o roteiro e o design do monstro e mesmo assim por ganância e fome de fama, aprovaram tudo.

E com essa lição, bons frutos saíram dessa árvore podre.


A série animada

Sequência direta do desastroso filme, a série animada é bastante surpreendente, pois ao contrário de seu antecessor, ela é boa. Apesar da criatura ter o mesmo design grotesco de seu pai, o novo monstro que protagoniza a série é muito mais parecido com o verdadeiro Godzilla, tendo até mesmo um bafo atômico. Não só ele como também o modo em que a série é feita remonta aos filmes clássicos. Jr enfrenta diversos monstros ao longo dos episódios e diferente de seu progenitor, ele é destemido. A série também deixa os personagens humanos muito melhores do que suas versões no filme, que são odiosos.


Era Millenium

Como citado anteriormente no texto, Toho só ia fazer um novo filme do Godzilla em 2005, dez anos após o término da era Heisei. Mas o nível de ruindade do filme da TriStar fez eles repensarem, e o resultado foi seis filmes do Godzilla de 1999 à 2004.

Apesar da bagunça com reboots a todo momento, a era Millenium é cheia de clássicos, os mais famosos sendo Godzilla 2000 e Godzilla Final Wars. E como a era Millenium nasceu da podridão que foi o longa de 98, metade dos filmes zomba da criatura chamada de Godzilla no filme da TriStar, o mais conhecido é claro a cena de Godzilla Final Wars (2004) onde Godzilla mata Zilla em segundos, mas Orga de Godzilla 2000 é também uma referência ao G.I.N.O, o design do monstro remete vagamente ao ser do filme de 98 e seu objetivo é ser Godzilla, porém ele falha. Bem como o monstro idealizado por Emerich.

Por fim temos a cena de Godzilla, Mothra and King Ghidorah: Giant Monsters All-Out Attack (2001) onde militares japoneses zombam dos americanos por terem confundido um monstro gigante que atacou Nova Iorque com Godzilla.


Monsterverse

Apesar do Monsterverse não existir por causa do filme de 1998 em específico, a existência do filme ajudou o Monsterverse a não se tornar um desastre. Já que é Godzilla nas mãos de americanos de novo. Mas dessa vez a Toho fica de olho nos roteiros e designs e caso algo não seja como deve ser, ela ordena que mudem. O fato de contratarem pessoas que realmente amam o personagem como Gareth Edwards, Michael Dougherty e Adam Wingard também ajuda os filmes a se manterem fiéis aos clássicos.


A Segunda chance de Terry Rossio com Godzilla

Como bem sabem, Terry Rossio era o roteirista original do filme da Tristar, mas com toda a confusão ele foi chutado e se dedicou a outros projetos.

Mas em Godzilla vs Kong (2021) o homem finalmente pôde escrever um roteiro de um filme do Godzilla novamente. Zack Shields e Max Borenstein (roteiristas do Monsterverse) pareciam ter bastante respeito por ele desde o filme de 2014, afinal o filme tem algumas semelhanças com o roteiro de Rossio e então o chamaram para escrever GvK, onde podemos notar algumas referências ao roteiro descartado de 94 no filme.

Confira algumas:


Para encerrar este artigo, deixo aqui um trecho de um ensaio escrito por Terry Rossio em que ele relembra essa trágica situação e a crítica.

 “BATALHA # 1: Obtenha a abordagem básica certa

 Você pensaria que isso seria óbvio, mas às vezes você tem que lembrá-los de coisas como, oh, seu filme de terror precisa ser assustador, ou sua comédia romântica deve ser romântica. Às vezes, eles ficam maravilhados, maravilhados e gratos por ouvir o bom senso e carregar caminhões de dinheiro –

Outras vezes, você diz exatamente a mesma coisa e eles ficam com aquele olhar distante com aquele meio sorriso condescendente que diz ‘você acabou não entendendo, não é, é o meio de um diretor.‘

GODZILLA é um estudo de caso perfeito. Eu diria que acertamos na abordagem básica: as pessoas queriam ter medo de Godzilla, mas também o amavam e queriam torcer por ele.

Então você deixa Godzilla entrar no filme, todo assustador, então traz algum outro grande monstro para ele lutar, então o público começa a torcer, e então deixa Godzilla chutar o traseiro do monstro, balançar aquele grande rabo dele e... se alguns prédios forem destruídos na briga, ei, esse é o preço que pagamos por ter o adorável lagarto defendendo nossa terra.

E aí está o seu filme de Godzilla.

Você está com medo, você está animado, Godzilla arrasa, você torce e traz a sequência.

Dean Devlin e Roland Emmerich, eu diria, estragaram tudo. Godzilla se tornou uma mãe que queria botar ovos na cidade de Nova York. E quando os militares dispararam contra ele, Godzilla ... Não posso acreditar, mesmo enquanto digito ... Godzilla realmente gritava, se virava, corria e se escondia.

Grite ... fuja ... e se esconda.

Em um filme do Godzilla.

Abordagem básica: errada.”

-Terry Rossio em O erro de cem milhões de dólares.


2 comentários:

  1. Parabéns 👏👏, ótimo post, eu amo a série do Zilla mas odeio esse filme besta

    ResponderExcluir
  2. Porque vocês não criam um servidor do discord?

    ResponderExcluir